D’ONOFRIO, Salvatore. Conceituação do Poético. In: O texto Literário. São Paulo: Duas Cidades, 1983.
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Poesia e prosa literária
As considerações feitas anteriormente acerca da natureza, dos caracteres e das funções da linguagem literária são válidas para o poético num sentido amplo, incluindo as obras não-versificadas. Com efeito, poiesis, etimologicamente, indica o ato de criar, o fazer artístico, independentemente de sua forma de expressão. A fronteira entre poesia e prosa literária é bastante fluida, existindo formas intermediárias, chamadas de poemas em prosa ou, prosas poéticas.
A distinção poesia-prosa literária era incontestada até a época do neoclassicismo, porque se fundamentava no aspecto formal do texto, mais do que no efeito produzido. A estética clássica considerava poesia o texto literário que se caracterizava pela sobrecarga do código retórico relativo ao uso da versificação, da escolha das palavras, das figuras de estilo, dos tópicos consagrados. Mas, do pré-romantismo para cá, assistimos a uma revolução do conceito do poético: enquanto a prosa literária tende a poetizar-se pelo uso de imagens, símbolos e ritmos, a poesia se aproxima cada vez mais da prosa literária pela renúncia aos esquemas métricos, rítmicos, estróficos. O verso-livrismo destrói a periodicidade do retorno fônico, o paralelismo sonoro, que caracteriza a poesia tradicional. O moderno conceito de poeticidade está centrado, mais do que em esquemas formais, num objeto ou numa realidade sentida e descrita artisticamente.
Mas, anulada a diferença formal e identificado o objetivo poético, qual é o critério para distinguirmos a prosa literária da poesia propriamente dita, um conto de um poema? Lefebvre (34, p. 170), sugerindo a substituição da distinção poesia/prosa pela de “discurso da poesia/discurso da narrativa”, vê a diferença no tipo de narrador: “O que pensa o senhor X do universo, ao despertar esta manhã no seu quarto, é matéria para narrativa; o que pensa, em geral, do universo o eu anônimo do autor é, consoante os casos, matéria para trabalho filosófico ou científico ou matéria para poesia”. O discurso da narrativa, segundo esse autor, seria ficcional ou diegético, ao passo que o discurso da poesia seria real ou autêntico.
A nosso ver, Lefebvre incorre aqui num equívoco: a ficcionalidade é uma característica inalienável do poético em geral e não apenas da literatura narrativa; não existe obra de arte literária se não for fruto da imaginação. Como o narrador de um romance, assim o eu do poema é também ele um ser ficcional, diferente da pessoa física do autor.
Reputamos que as características estruturais do poético, quer as que enformam o discurso quer as que enformam a fábula, são comuns à poesia e à prosa literária e que o que distingue uma forma literária de outra é o grau maior ou menor de poeticidade com que atuam. Como a linguagem literária se diferencia da linguagem usual quantitativa e não qualitativamente (quanta poesia não existe nos adágios populares, na linguagem infantil ou do homem apaixonado!), assim a poesia se diferencia da prosa literária pela presença em grau maior dos elementos fônicos, lexicais, sintáticos e semânticos constitutivos da linguagem poética. Da mesma forma, os elementos estruturais constitutivos da narrativa literária (narrador, ação, personagem, espaço e tempo) se encontram, embora de um modo reduzido, também no poema.
Por isso, podemos afirmar que um romance é um poema expandido e um poema um romance condensado ou, de acordo com Paul Valéry, que a poesia é a literatura “reduzida ao essencial de seu princípio ativo”. Não é outra a opinião de Cohen:
A prosa literária não é senão uma poesia moderada em que a poesia, por assim dizer, constitui uma forma veemente da literatura, o grau paroxístico do estilo. O estilo é uno. Apresenta um número finito de figuras, sempre as mesmas. Da prosa para a poesia, e de um estado de poesia para outro, a diferença está na audácia com que a linguagem utiliza os processos virtualmente inscritos na sua estrutura (129, p. 121).
O seguinte gráfico mostra os graus de poeticidade:
Grau de poeticidade |
0 |
1 |
2 |
3 |
4 |
Máximo |
Linguagem do |
cientista |
Homem comum |
crítico |
romancista |
Poema sem rima e sem metro |
Poema integral |
A poesia não se distingue da prosa literária pela presença da rima (há poemas sem rima), nem do metro (há poemas de metro irregular ou sem metro),nem do ritmo (a prosa literária também pode ter um ritmo poético), nem da estrofe (como há romances sem divisão em capítulo, assim há poemas sem divisão estrófica). A diferença reside na presença ou não do verso. Verso, do latim versus, significa “retorno”, “volta para trás”; ao passo que prosa, do latim prorsus, significa “ir para a frente”, “avançar sem limites”. Teoricamente, se o espaço gráfico o permitisse, um conto ou um romance poderia ser escrito numa única linha. Um poema, diferentemente, é constituído pela segmentação de sua escrita: cada verso é um recorte no continuun do discurso, estabelecendo pausas fônicas independentemente das pausassintáticas. Por isso a prosa se caracteriza pelo ritmo da continuidade e a poesia pelo ritmo da repetição.
Mas, apesar dessa diferença formal, os elementos estruturais do poético, como já notamos, são comuns a qualquer obra literária, seja ela versificada ou não. A divisão que apresentaremos de elementos estruturais da narrativa e elementos estruturais do poema tem apenas uma finalidade metodológica e didática e prende-se a predominância de alguns elementos sobre outros. É fácil notar que o foco narrativo, as ações, as personagens, as determinações espaciais e temporais, em toda a sua pluralidade, são elementos que se encontram mais evidenciados em obras narrativas, como romances, contos ou poesia épica, ao passo que as relações fono-semânticas e as figuras de estilo são elementos mais específicos da obra versificada, especialmente do tipo de poesia que se costuma chamar de lírica.
Outro critério para distinguir a ficção em prosa da ficção poética pode ser o grau de “credibilidade”. Desde as suas origens, a poesia apoderou-se do domínio da fantasia, reservando para a prosa o campo da ciência e da verdade. E a prosa, mesmo quando adentrou o território imaginativo da poesia, procurou salvaguardar esse seu estigma inicial: ter uma aparência de veridicidade. A obra ficcional em prosa sempre pretendeu ser crível ou verossímil. O poeta Homero pôde cantar as incríveis façanhas de deuses e heróis com a mais absoluta liberdade de imaginação, sem se preocupar com que algum ouvinte ou leitor pudesse inquirir sobre a fonte de seu conhecimento; os prosadores do mesmo assunto ficcional (a Guerra de Tróia) procuraram precaver-se contra o espírito crítico dos leitores, colocando no início de suas obras literárias pseudofontes históricas (Chassang, 72, p. 23). Tal costume perpetuou-se na história da narrativa em prosa e intensificou-se na época do Romantismo, quando os romancistas, para conferir um caráter de historicidade às obras, inventavam a existência de manuscritos anônimos de que os romances seriam apenas transcrições e reelaborações.
É por força do desejo de ser acreditado que todo ficcionista em prosa, um mais outro menos, consciente ou inconscientemente, estrutura sua obra segundo o princípio da verossimilhança: o autor, através do narrador fictício, procura prestar conta ao leitor do modo pelo qual veio a conhecer os fatos narrados: “Reina aqui urna estranha coincidentia oppositorunn: por um lado, deseja-se que o romance derive da fantasia como a força mais poética (ficção é um termo técnico bem adequado); por outro lado, deseja-se, todavia, a verossimilhança, a realidade, mesmo a “certificação” do que é narrado” (Kayser, 33, II, p. 261).