MODOS DE NARRAR
Modos de narrar
Susana Souto
Apresentação
Como vimos, em Teoria Literária 1, toda escrita é intertextual, dialógica, antropofágica, escrevemos dialogando com outros enunciados, incorporando-os, devorando-os. Começo, então, por explicitar os autores que devorei e digeri na elaboração deste texto: todas as narrativas que li, mas principalmente as do escritor argentino Júlio Cortázar, seus contos e seus dois textos sobre conto publicados no livro Valise de cronópio, intitulados “Do conto breve e seus arredores” e “Alguns aspectos do conto” (vocês encontram cópia com o tutor presencial); Nádia Battella Gotlib, com seu livro Teoria do conto; Ricardo Piglia, no volume Formas breves, Jorge Luis Borges, em todos os seus contos, em especial nos de Ficções; Clarice Lispector e seus roamnces e contos; J. Culler e seu Teoria literária: uma introdução, livro curto, mas esclarecedor. Essas vozes, e outras, ecoam em meu texto, fazem parte da trama desse tecido que partilho agora com vocês.
Narrar e viver
Narramos muito, narramos de várias maneiras. Narramos histórias no cinema, nas artes plásticas, na dança, no teatro, nos quadrinhos, nos jonais, na TV, na internet, nos poemas, nas músicas, nos contos, nos romances... No cotidiano, também narramos muito, seja por escrito, seja oralmente. Quando nos acontece alguma coisa importante, ligamos para um amigo ou amiga, escrevemos para nós mesmos ou para outros, conversamos com alguém, transformamos o que nos aconteceu em narrativa. A fofoqueira da cidade é uma grande narradora, conta tudo, muda, acrescenta, levanta hipóteses, observa atentamente os acontecimentos da tribo.
Mas afinal por que narramos tanto e de tantas formas? Segundo pesquisadores, o homem confere sentido ao que vive narrando, quando está triste, quando está alegre, quando está entediado, quando está sozinho ou acompanhado, e, assim, tenta organizar o que vive, imagina, o que teme, o que deseja, em forma de narrativas. Há outras formas também, mas narrar tem sido a maneira preferida dos homens desde a época das cavernas, para tentar construir algum sentido para o vivido. Desenhos, palavras, fumaça, sinais diversos, gravados em pedra, dispersos no ar, contam histórias do que somos, do que sonhamos...
Walter Benjamin, um pensador alemão, em um belo texto, “O narrador”, diz que a fonte da narração é a experiência que passa de pessoa a pessoa, ele acrescenta que a narração é o “lado épico da verdade”, ou seja, o lado da verdade que pode ser narrado. Afirma ainda que, nos primórdios da arte de narrar, encontramos dois grupos principais de narradores:
1. aquele que viaja muito e conta o que viu em outras terras (marujos, guerreiros);
2. quem permanece em sua terra e narra a sua experiência de vida e de trabalho (camponeses).
Depois os artífices aperfeiçoaram esta arte, pois nas oficinas medievais esses dois grupos conviviam, misturavam-se e narravam. Da Idade Média nos chegaram as novelas de cavalaria, o universo de resis, rainhas, príncipes, bruxas, universo este que ainda hoje encantam milhões de leitores no mundo inteiro.
Narrativa e memória
Narramos para não esquecer? Essa é uma das hipótes dos pesquisadores para o número imenso e a variedade de narrativas em nossa vida. Há uma íntima relação entre narrativa e memória. O conto é, entre as narrativas, talvez a mais antiga. A que começou quando os primeiros homens se reuniram em torno de uma fogueira, depois de um dia de caminhada, de caça, de coleta de frutas, para alimentar o corpo e o espírito. Há lendas, mitos, narrativas diversas organizadas com poucos elementos.
Muitas das narrativas mais antigas estão reunidas em um famoso livro traduzido para várias línguas: As mil e uma noites, um livro que tem autoria coletiva, que não tem um só autor figurando como criador na capa. De países árabes e da Pérsia, nos vêm essas histórias cheias de fatos fora do comum (extraordinários), com violência, paixão, morte, feitiços, viagens, traição, amizade... temos um pouco desse universo na foto ao lado.
A primeira história desse livro fala de um sultão chamado Shariar que foi traído pela esposa. Ficou revoltado, matou-a e decidiu que nunca mais seria traído. Assim, sempre que desejava, ele casava-se e, após a noite de núpcias, mandava degolar a esposa (o casamento durava apenas uma noite). Sharazade, uma jovem narradora maravilhosa, resolve mudar essa história. Oferece-se para a ser a próxima esposa do sultão. Na noite do casamento, ela disse a sua irmã: “Fique na porta do quarto, quando perceber que não há mais barulho ou movimento, entre e peça ao sultão para que eu lhe conte uma última história, antes de morrer”. A irmã obedeceu. O sultão concedeu e Sharazade contou uma história para a sua irmã e também para o sultão que está próximo. Ele fica curioso e seduzido pela narrativa. Quando amanheceu, Sherazade ainda não havia terminado a sua história, porém, ela silenciou. Ele, curiosos para saber o final, disse: “Termine a história”. Ela respondeu: “Não, que eu vou morrer”. Ele: “Termine, eu lhe concedo mais alguns minutos”. Ela: “Não. Só termino na noite seguinte, se você permitir que eu viva até lá”. Ele, movido pelo desejo de ouvir o final da narrativa, concedeu mais um dia de vida a sua esposa. Isso se repetiu por mil e uma noites insones, nas quais o sultão ouviu uma narradora adiar sua morte com as histórias que conhecia. Após esse tempo, ela, que já havia lhe dado um filho, havia provado que era fiel, e foi, então, liberta pelo sultão da ameaça, assim também como ficaram livres o sultão e o reino, da violência, da morte.
Narramos para não morrer? Narramos porque morremos e queremos que muito permaneça após a nossa morte? Narramos para adiar a morte? Há muitas interpretações para essa história maravilhosa que nos foi legada por um povo distante. Uma delas é esta: narramos para adiar a morte. Mas há ainda outra lição: Sherazade sobreviveu porque soube narrar e porque soube a hora exata de calar.
Nós ainda vivemos as mil e uma noites de várias formas, inclusive lendo-as, pois há muitas edições em várias línguas. A estrutura de narrar e interromper no auge do suspense para que o receptor deseje conhecer o final e volte no dia seguinte foi usada pelo folhetim, no século XIX, pela rádio-novela, no século XX e ainda hoje orienta a organização das novelas de TV, não é verdade? O capítulo do dia termina deixando no ar um suspense, criando no público o desejo de voltar a assistir a novela no dia seguinte.
Elementos da narrativa
Há muitas formas de narrar. A historiografia narra (ou tenta) o que aconteceu a um povo, recuperando uma memória social, coletiva. A história do Brasil império, por exemplo, organiza os principais fatos vividos por personagens desse período da história brasileira. Diversos campos do conhecimento científico narram com recursos específicos. Nós mesmos já experimentos diversos modos. A literatura também recebeu esses modos e ainda criou outros. No campo da narrativa literária, temos vários gêneros, que estudaremos no Terceiro Capítulo, ou seja, na terceira semana das nossas atividades.
Mas o que é uma narrativa? Quais são os elementos que a constituem? A seguir, serão apresentados sucintamente os elementos principais da narrativa. Há uma vasta bibliografia sobre cada um deles. A pesquisa pode se concentrar mais atentamente em apenas um. Por exemplo, é possível pesquisar a construção da personagem em um romance de Machado ou o tempo como elemento fundamental na narraiva clariceana. Com o tutor, vocês encontrarão os seguintes textos:
“A personagem do romance”, de Antonio Candido;
O tempo na narrativa, de Benedito Nunes;
Em toda narrativa (seja literária, cinematográfica, historiográfica, jornalística, etc.), temos ações vividas por personagens (reais ou fictícios), situadas no tempo e no espaço; todos esses elementos são ordenados de uma determinada perspectiva, ou seja, a partir de um foco narrativo. Assim, temos, na definição acima, todos os elementos da narrativa:
o enredo: o conjunto de ações apresentadas na narrativa. Pode ser ordenado de diversas formas. O modo mais convencional é: apresentação, conflito, clímax e desfecho. No entanto, há muitas narrativas em que não temos a apresentação, o início já é o clímax, por exemplo, em uma história policial, na qual, logo no início, ocorre o assasinato. Nesse caso, podemos pensar que temos dois clímax (o momento mais intenso da ação): um quando a personagem morre, outro quando o investigador descobre o assassino. Durante muito tempo, as narrativas tinham enredos complexos, cheios de ações extraordinárias (extra: fora; ordinário: comum). No entanto, o romance moderno, se configura, quase, sempre, como narrativas com enredo simples e personagens complexas;
o personagem: podemos escrever/dizer a personagem ou o personagem. No primeiro caso, concordamos com a etimologia, com a origem da palavra: personagem vem de persona, que dá também a palavra personalidade. Vale, portanto, lembrar que a personagem tem uma configuração física (que pode ser apresentada por meio de uma descrição bastante sucinta e econômica pelo narrador), mas é principalmente, uma personalidade, um conjunto complexo de traços. Quase sempre, a personagem é na narrativa o elemento do qual mais nos lembramos, talvez porque, não raro, elas se parecem conosco, nós nos identificamos com elas. Afirma Candido que a personagem “é o elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelística” (1985, p. 54).
o tempo: que pode ser delimitado de modo explícito ou não, pode ser cronológico ou psicológico. O tempo a duração da história (posso contar um dia da vida de um personagem no século XVII, ou posso contar a saga de uma família em três séculos) e o tempo em que ela ocorre (escrevo uma história situada no século XX ou no século XII);
o espaço: lugar ou lugares nos quais transcorrem os fatos narrados. A descrição do espaço, por exemplo, da casa da personagem, pode nos falar da condição econômica da personagem. O espaço não é mero cenário, às vezes, atua como personagem na narrativa, está intimamente articulado com os outros elementos do conto e, às vezes, aparece já no título da narrativa breve ou longa: O cortiço, de Aluízio Azevedo, O ateneu, de Raul Pompéia, São Bernardo, de Graciliano Ramos, Os sertões, de Euclides da Cunha;
o e foco narrativo: a perspectiva a partir da qual são articulados todos os demais elementos da narrativa. Aqui, vale a pena recuperar a analogia com o foco da câmera fotográfica. Quando tiramos uma foto, nós aproximamos ou distanciamos mais o foco. Quando aproximamos, podemos ver os detalhes, destacar elementos mais sutis. Quando distanciamos, perdemos os detalhes, mas englobamos algo mais amplo. Assim também o foco narrativo. A narrativa pode ser organizada por um narrador onisciente, por exemplo, aquele que, semelhante a um deus, tudo sabe, o que as personagens fizeram, farão, sentem, pensam etc.
No decorrer deste mês, nós leremos muitos textos narrativos e teóricos. Vamos investigar um pouco mais como esses elementos articulam-se em textos de diversos gêneros: conto, novela, fábula, romance, crônica. Espero que este seja o início de mil e uma noites de leituras instigantes para todos!
Referências
CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: A personagem de ficção. 7. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1985.
GOTLIB, Nádia. Teoria do conto. São Paulo: Ática.
CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva.
PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Sâo Paulo: Cia. das Letras.
BORGES, Jorge Luis.
LISPECTOR, Clarice. Laços de família.