"Plebiscito" é um dos contos em prosa de Artur AZEVEDO (1977, p. 286), marcante, por seu tom humorístico, jocoso e ate mesmo satírico.
Esse conto gira em torno do significado do vocábulo plebiscito e tem inicio com uma pergunta formulada a esse respeito por um menino a seu pai. Este, comerciante burguês, não sabendo respondê-la e não querendo humilhar-se diante da família, para conservar, como ele próprio o diz, a força moral que deve ter em casa,
"Não digo para não me humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa!"
procura através de dissimulações variadas, esconder a sua ignorância a respeito do significado da referida palavra. No entanto, pressionado por sua mulher (a qual, no conto, estabelece, por meio de sua conduta, a contrastação, com a final idade não de se opor totalmente ao senhor Rodrigues, mas como elemento fundamental para evidenciar, por sua vez, a conduta do marido) para explicar ao filho o tal significado, acaba exasperando-se e, nervosamente, sai da sala de jantar onde a família se encontrava reunida, dirigindo-se para o quarto de dormir. Ai encontra exatamente a única coisa de que necessitava - um dicionário, onde verifica furtivamente o que quer dizer plebiscito. Em seguida, para manter a harmonia familiar, os filhos e a mulher do protagonista resolvem chamá-lo para que venha sentar-se novamente a sala de onde saíra num ímpeto de cólera. Era só isso que o negociante esperava, para dogmaticamente expor a significa; ao do vocábulo, vocábulo esse que constitui o "pivot" da questão. Nessa altura da narrativa, nova e última cena "teatral" e montada. O narrador prepara o ambiente para que o senhor Rodrigues alivie as tensões dos outros personagens, de vez que as suas próprias já as aliviara, ao esclarecer-Ihes a significação do referido vocábulo. Tudo isso é relatado através de fatos sucessivos em que um é a consequência inevitável do outro, constituindo, por isso mesmo, aquilo que BURKE (1969, p. 128) chama progressão silogística.
Possuindo apenas uma célula dramática, "Plebiscito" é elaborado, de certa forma, sob os moldes tradicionais, obedecendo a uma estrutura sintática linear, cuja linguagem reflete os padrões clássicos e, por isso mesmo normativos, exigidos e observados pelo autor.
AZEVEDO (1977, p. 285) demonstrou não querer separar-se do palco e, nesse conto, dividido intencionalmente em quatro partes ou quatro atos, ressalta a colaboração buscada no teatro para elaborar o conto. A primeira parte, conforme se pode observar claramente, é, de certa forma, semelhante a uma indicação cênica:
"A cena passa-se em 1890. (. . .) Silêncio."
Essa aparente disposição cênica, vista não por um ângulo puramente teatral e sim literário, funciona como um prólogo, possuindo valor muito mais ontológico do que propriamente artístico. É certo que, com esse recurso, o autor de Contos fora de moda, utilizou o processo da economia verbal ao aproveitar esse mesmo prólogo para apresentar, de maneira sucinta, a sua cosmovisão romântica e patriarcal de uma pequena família burguesa, caracterizada aí, quase que unicamente, pela maneira pantagruélica de comer do senhor Rodrigues, "comer como um abade", detalhe mínimo, convencional, mas altamente identificador tanto do meio social, em que a família vivia quanto do aspecto caricatural atribuído pelo narrador ao protagonista, além de lhe conferir, a nosso ver, um caráter semi universalizante, de vez que representa, de certa forma, uma classe social complexa. Essa complexidade da classe social não lhe confere, no entanto, a possibilidade de torná-lo personagem redondo, de vez que ele não é capaz de surpreender o leitor de modo convincente. (FORSTER,.1969, p 61).
Os membros da família, em número de quatro (número máximo exigido pelo conto tradicional) serão os únicos personagens, todos eles participando ativamente do processo narrativo.
Ao dar-se início ao primeiro segmento, na movimentação indireta das figuras, é que se pode ver a transformação dessa cena estática, á qual nos referimos mais acima, num todo organizado e dinâmico, todo esse que constitui a linguagem literária. Queremos evidenciar que essa cena a qual chamamos estática e que está muito próxima de uma certa realidade ou verdade, quer pela sua clareza, quer pela sua objetividade, não está ligada a um referente
exterior a ela, por isso mesmo, determinado e preciso, mas, ao contrário, afasta-se cada vez mais dessa realidade ao constituir a sue própria, feita unicamente de palavras.
Empregando o discurso direto em quase todo o conto, o narrador apresenta os vários enunciados que aí aparecem, assinalados no plano formal por verbos declarativos, tais como: "perguntar", "chamar", "dizer", etc. . . Usando esse recurso, o autor consegue fazer com que os personagens, através da forma expressiva desse tipo de discurso, elevem-se das sues situações e tornem-se vivos e operantes diante do leitor-ouvinte.
Ao obedecer rigidamente os padrões tradicionais de estímulo, resposta imediata (recurso explorado aprioristicamente no texto de tempo cronológico) em todas as situações de caráter indagativo, o autor confere um maior dinamismo ao tempo da narrativa ao captar um flagrante sócio-burguês. Esse dinamismo aqui é reforçado também não só pela naturalidade elaborada da diegese, como pela combinação adequada do texto expositivo a fala dos personagens, preservando a indissociabilidade intuição-expressação de que fala Croce. ap. SILVA (1973, p. 218).
Outra vantagem da utilização desse discurso é que o leitor vê-se obrigado a participar diretamente da tessitura verbal da narrativa, de vez que, por uma espécie de magia, também verbal, ale, leitor, é colocado sem intervenções, diante dos personagens e, fortemente envolvido por eles tam a intenção de participar da ação. Com isso opera-se um vínculo maior entre ambos, ressaltando a influência exercida pelo teatro (gênero que, como se sabe, apoia-se nesse tipo de discurso) de vez que uma das características do público dramático é justamente o querer cooperar como a representação cênica dos personagens, como acontece no teatro dos dias atuais.*
Aqui e ali, AZEVEDO (1977, p 286) foge um pouco do
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* Parece-nos oportuno salientar as ideias de Wellek e Warren com relação a "Literatura e as outras artes' : assinalam eles que "por vezes a literatura tom tentado por forma definida, alcançar os efeitos do pintura - tornar-se pintura com palavras -, ou atingir os efeitos do música - transforma-se em música. Em certas ocasiões, a poesia tentou mesmo tornar-se 'escultórica'. (. . .) Mais duvidosa é, porém, a questão de indagar se a poesia pode produzir os efeitos do música. . ." A posição desses estudiosos vale pare o caso em questão. Embora se possa afirmar que "Plebiscito" é uma pequena comédia burguesa por certas objetividades que apresenta, não estamos contudo, estabelecendo paralelo entre as duas artes: a literatura e o teatro, de vez que cada uma deles dispõe de recursos próprios, os quais lhes conferem plena autonomia. Daí concordamos com Wellek o Warren e podermos dizer que "Plebiscito" não pode ser considerado mais teatro que literatura, pelo fato de ele ser quase inteiramente dialogado e possuir uma indicação cênica entre outros recursos. WELLEK, René & WARREN, Austin, Teoria da literatura. Lisboa, Europa-América, 1962. p. 158-159.
tradicionalismo acima referido a que o conto estava vinculado como estrutura mais ou menos fixa. Deve-se isto ao fato de o autor utilizar o passado anterior ao episódio desenrolado no presente, como elemento de certa importância, de vez que não economiza, mas, ao contrário, alarga as fronteiras da narrativa, num elástico jogo temporal ao mencionar os acontecimentos precedentes,
"Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, e o menino ficou sem saber."
para com isso conferir maior dinâmica a sua narração
Não obstante o autor haver atribuído relevância a um episódio passado, o mesmo não acontece com relação ao espaço em que a ação é desenvolvida. Esta transcorre unicamente numa sala de jantar, lugar escolhido para que seja evidenciado o cl ímax da narrativa.
O outro aposento mencionado, isto é, o quarto de dormir, assume o lugar não só de "porto seguro" para o senhor Rodrigues, como desempenha uma espécie de função catártica em que todas as tensões sofridas por esse mesmo senhor aí terminam, ao lhe serem restituídas a paz e a calma interior de que naquele momento tanto necessitara. Nesse ultimo aposento havia o remédio miraculoso para os seus males, não as "gotas de flor de laranjeira, mas um dicionário. . ."
Nesse segundo aposento o autor não consegue obter igual intensidade dramática oferecida pelo ambiente anterior. Para nós, o conto de Artur de Azevedo deveria ter aí, sua conclusão, pois assim guardaria o caráter de surpresa tão característico desse tipo de composição, tal como acontece, aliás, com as adivinhações.
A nosso ver, AZEVEDO, como narrador onisciente, não necessitaria do personagem da menina. Esta funciona como um elemento desnecessário, estranho ao texto, amorfo, uma espécie de deus ex-machina, introduzido apenas para "salvar" o senhor Rodrigues da humilhação a que estava condenado a sofrer, e dar uma solução favorável ao angustiante e insolúvel problema pessoal do referido senhor. O conto em si não reclama tal inclusão, de vez que a sua unidade de ação já estava completa, isto é, a convergência de todos os dados necessários para que houvesse núcleo dramático achava-se plenamente configurada. A expansão do texto enfraquece, daí por diante, a narrativa, e o leitor de "Plebiscito" ao presenciar sair do quarto o protagonista já antevê o que vai acontecer ate o final da estória. Isso vem quebrar uma das regras do código retórico, a de que o leitor não pode a priori, saber o que vai acontecer, mas à medida que o discurso se desenrola é que as regras surgidas com e na obra vão-se re-velando, conforme as exigências do próprio código literário. Dai porque discordamos de MONTELLO (1956, p. 41) quando afirma este que Artur Azevedo "sem uma palavra demais, com os movimentos da pequena comédia perfeitamente encadeados termina o conto da melhor forma teatral". A nosso ver, o segundo e o terceiro segmentos, olhando-se do ponto de vista da narrativa, constituem elementos pouco relevantes.
Com a distensão do texto, o movimento rítmico que vinha acompanhando a narrativa, num processo gradativo, em que a maior precipitação é marcada pela saída brusca do protagonista, cai e passa a fazer com que esses dois últimos segmentos fluam lenta e monotonamente.
Quanto ao tempo, a narrativa se apresenta presa ao movimento cronológico, objetivo, chegando mesmo a precisão de marcar o ano em que a cena se passou - 1890. Isto evidencia a rigidez estabelecida convencionalmente pelo homem para controlar o seu relacionamento com os demais membros da comunidade em que vive. Os momentos "angustiantes" vividos pelo senhor Rodrigues não chegam a constituir desacordo entre o tempo cronológico e o espiritual e as suas aflições não representam, em nenhum instante, sofrimento interior propriamente dito. Em "Plebiscito" não há choque entre esses dois tempos, daí a narrativa discorrer normalmente e sem alterações de qualquer natureza, de vez que os personagens do conto são seres destituídos de profundidade psicológica, possuindo apenas o "eu artificial" de que nos fala BERGSON, (1959, p. 1258).
Fonte: https://celiacoelhobassalo.blogspot.com.br/2011/01/famigerado.html Acesso: 18/04/2014